11 novembro, 2008

História de Barg, o dragão

É sabido que as lendas têm por trás um fundo de verdade; uma história verídica que, finados os protagonistas, testemunhas e demais contemporâneos, sofreu distorções inerentes à tradição oral, ao fervor épico ou ao eloquente lirismo dos contadores de histórias.

A história dos dragões não é uma destas: é a mais pura das verdades, atestada pela firmeza com que perdurou até hoje, apesar da desoladora inexistência de vestígios que suportem tal veracidade. Em particular, é verdadeira a história de Barg, a hedionda avantesma que ainda hoje ressona na sua caverna escondida recheada de ouro e jóias, já muito velho para que a honra de uma visita sua tenha acontecido a qualquer homem ou mulher, criança ou velho do Lugar.

Esta é a história de Barg, o dragão. As tradições mais antigas colocam a sua chegada ao Lugar de Hueiras no tempo do rei Teotónio, o sexto da primeira dinastia. Chegou sem aviso a um lugar onde ninguém jamais ouvira falar de tais vermes; envolto em chamas, conta-se que as próprias nuvens se incendiavam à sua passagem e que o céu era como um mar de fogo. Arderam pastagens e florestas, cursos de água desapareciam em fumarolas; formavam-se tornados de fumo negro no imenso braseiro, com línguas de fogo que levavam cada vez mais longe o incêndio. O povo deu por findos os seus dias e temeu o naufrágio da terra no Inferno.

Barg instalou-se numa ampla e confortável caverna, na serra que ficou conhecida como Batam S'Intra, a Montanha do Dragão, depois de transformar as terras em volta, outrora verdejantes, na imensa charneca castanha que são as terras ermas de Cascais. Era ainda um dragão jovem e não passava muito tempo no seu covil. Saía em todas as estações secas, visto que a chuva provocava irritação às suas jovens escamas; entretinha-se a atear pequenos incêndios na charneca, pelo puro prazer de ver o fogo crescer e espalhar-se e consumir léguas e léguas de floresta e mato.

Todos os anos, interrompia os seus passeios com a chegada das chuvas, a que se seguia um longo e implacável Inverno de neve e gelo; mas, na Primavera, com os primeiros dias de calor, a cobertura glacial derretia e formava charcos onde nova vida se desenvolvia rapidamente; apenas para que, no Verão, Barg regressasse para pôr um fim abrasador a todo o trabalho rejuvenescedor da Natureza.

Assim se passaram os anos da juventude de Barg. Bem longe da Montanha, na sua capital junto à foz do grande rio Tejo, o rei Teotónio apercebia-se da cada vez mais preocupante escassez de carne de caça à sua mesa. O povo hueirense era empreendedor, contudo, e florescia o negócio de fumados de veado, javali, cabra-montês e boi-almiscarado. Foi pelos relatos dos corajosos apanhadores de carcaças que o rei veio a ter conhecimento da existência do dragão, antes de este saber da existência de humanos.

Prudente, informou-se junto dos estudiosos e dos viajantes. Aprendeu sobre os hábitos dos dragões e soube que eram irresistivelmente atraídos por ouro, jóias e outros objectos valiosos; soube que vários tinham sido combatidos com sucesso e mortos por cavaleiros em armaduras reluzentes. Desde modo, decidiu enviar o seu campeão, São Jorge, armado e ricamente ornamentado para melhor atraír a cobiça do dragão, à toca deste, durante o seu descanso hibernal.

Mas Barg, que ainda não era um adolescente pela contagem de dragão, não reagiu às jóias com a avidez esperada; além disso, estava muito confortável na sua letargia. Olhou com desinteresse para aquela estranha criatura metálica que se equilibrava a custo noutra criatura - um cavalo, sim, essa era sua conhecida dos churrascos nas estepes...

São Jorge, então, tirou o elmo emplumado e proferiu o seu desafio, em nome do Rei Teotónio e de todas as terras a Sul de Batam S'Intra. Barg, surpreendido, sentiu despertar dentro de si alguma memória há muito esquecida, de quando brincava com os seus amigos dragões, no ninho, com criaturas que andavam sobre duas pernas, apanhadas pelos progenitores, que lhes diziam tratarem-se de humanos.

Barg estava há tanto tempo longe da família, sozinho naquela terra estrangeira, que quase se esquecera dos grandes olhos e narinas benevolentes dos seus pais. E, como acontecia frequentemente com os dragões quando lhes dava o sentimento, Barg sentiu uma contracção involuntária na sua longa traqueia e soltou um violento soluço de chamas ardentes, que derreteram a armadura do santo cavaleiro e chamuscou as crinas do seu nobre corcel; este empinou-se, em pânico e largou a trote pelas enxostas abaixo, arrastando São Jorge severamente queimado pelos os arreios.

No torvelinho de sentimentos, entre a nostalgia e a surpresa Barg reconheceu um impulso de desejo, um instinto de cobiça que era próprio dos dragões, e percebeu que estava de algum modo relacionado com a armadura reluzente e as jóias transportadas pelo cavaleiro. Despertou por completo e saíu voando atrás do corcel que galopava, aterrorizado, lá em baixo, na charneca. Colocando-se por trás, em voo razante, soprava pequenas chamas que soltavam as jóias da armadura e acabavam de grelhar São Jorge dentro desta. Quanto viu que soltava a última, abandonou a perseguição para juntar todos os pedacinhos coloridos num montinho, que cobriu com o seu ventre sensível de dragão. E sentiu um prazer que jamais conhecera na sua curta vida...

Entretanto, o cavalo de São Jorge acabou por ir dar à cidadela do Rei Teotónio, arrastando uma amálgama de metal derretido que continha já as relíquias de São Jorge. Ainda hoje este relicário é venerado na Igreja Matriz de Hueiras.

Barg o resto do Inverno a explorar a novidade deste recém-descoberto prazer que era deitar-se em cima de um monte de coisas preciosas. Levou os despojos para a sua caverna e sentiu-se tão bem que o Verão chegou e ele negligenciou a sua ocupação anterior de incendiário. As estepes voltaram a cobrir-se de vida durante esse ano sabático.

No entanto, Barg acabou por sentir nascer-lhe uma nova insatisfação. O dragão adulto manifestava-se já no seu espírito e a cobiça dava rapidamente lugar à avidez. Começou, então, uma nova fase da sua vida, procurando mais riquezas e acabando por descobrir que os dragões e os humanos tinham algo em comum; passou a atacar caravanas de mercadores para lhes tirar as moedas e as gemas, pelas quais sentia um insaciável apetite. Para coroar estas investidas, acendia fogueiras triunfais com os cadáveres e os despojos não valiosos.

Estes ataques traziam-no cada vez mais perto da praça-forte de Hueiras. Crescendo em poder, tamanho e malícia, cada vez mais confiante e orgulhoso do seu monte de pedras preciosas, Barg ia vencendo a inquietação que lhe provocava a proximidade do Grande Rio, o Tejo de muitos povos.

Uma noite, atacou a cidadela e acendeu, um por um, os muitos telhados de colmo, que cobriam as habitações pobres onde descobriu que havia pouco para pilhar. Redescobriu o deleite de observar o espectáculo das chamas, onde via reflexos do ouro em que se deitava na sua caverna. Envolto em labaredas, voou em círculos em torno do castelo de Santo Amaro, a fortaleza do Rei Teotónio. Sentia que as principais riquezas eram guardadas atrás dos seus portões de ferro.

Desceu e pousou com grande impacto do seu corpanzil na calçada, decidido a derreter a barreira que se interpunha entre ele e o seu objectivo. Mas, para seu grande incómodo, nem o fogo do pai de todos os dragões conseguiria derreter os portões de Santo Amaro, forjados pelos gigantes das montanhas do longínquo Leste, do minério da própria rocha em que o Altíssimo gravara os seus mandamentos.

E ao Altíssimo dirigia o Rei os seus pensamentos nesse momento de grande angústia; e invocou a protecção de Deus para o seu povo e Deus, misericordioso, enviou o seu Espírito para combater o furioso dragão.

Sob a forma terrível de Pomba Branca, o Espírito Santo combateu Barg, a avantesma, e o combate entre ambos deu tema à maior canção épica desses tempos. O fogo da Terra combatia o fogo do Céu e o equilíbrio era total; foi só a menor experiência do dragão que ditou a sorte do combate. O rio Tejo e o ascendente do Espírito Santo junto das aves palustres contribuiram para a sua queda.

Barg, cansado e furioso, não viu o bando numeroso que se aproximou a coberto do fumo e vapôr; eram pelicanos e traziam as enormes goelas cheias de água. A surpresa e o choque tiveram um efeito devastador no dragão, encharcado, humilhado e apagado. Caíu sobre as ruínas da cidade, espalhando os escombros e os cadáveres enquanto se contorcia com dolorosas comichões. Das suas fauces só saíam vapores inofensivos; sufocava.

Conseguiu rastejar até à sua caverna, porque todos os vermes aprendem em pequeninos a movimentar-se pelo chão por impulso de contorções. Deixou um rasto de podridão e vergonha pelos coutos do Rei Teotónio.

O Espírito Santo não o perseguiu. Sabia que, mesmo tendo-o deixado fora de combate, não tinha poder para destruir Barg. Sabiamente, pagou aos seus mercenários com farto maná e voltou para o Céu.

Durante anos, Barg permaneceu na sua caverna, rosnando de raiva e dores inimagináveis. Passou todo o tempo em cima do seu tesouro e não causou mais problemas a D. Teotónio e sua gleba. Refogava em lume brando um novo ódio frio a todo o reino de Hueiras e seus habitantes. Por esse tempo foi amadurecendo e crescendo em malícia, garantindo a si próprio que voltaria a atacar Hueiras, quando tivesse a certeza de não deixar pedra sobre pedra.

A Porta do Submundo III

Trompo, o décimo rei de Hueiras, foi entronizado ainda adolescente após a morte do seu pai, Amagadão, que definhou e morreu de desgosto, velho mas sem atingir idade centenária. Nesse tempo os hueirenses acreditavam que a Porta tinha sido fechada para sempre; os mais atentos, contudo, podiam verificar que o antigo bloco de basalto tinha assentado ligeiramente ao ser recolocado na abertura e esta não ficara hermeticamente selada: havia um intervalo, no topo, por onde não passaria um fio de cabelo, mas lembrava aos mais desiludidos que a História é uma viagem sem regresso e o que foi feito não pode ser desfeito.

Aconteceu que o Lugar d'Hueiras foi atingido por uma terrível praga de mosquitos, ainda o povo do Lugar não caíra na conta do contrasenso em que incorria ao dirigir-se ao jovem Trompo como "Pequena Majestade" - eram barrocos e abusadores de uma língua degenerada que se aprazia em urdir monstros como títulos, com que agraciavam um "Grande Ministro" ou a respeitada classe profissional dos Mestres Menores. Sua Pequena Majestade Trompolemeu Filiopater, era mesmo assim, não declinado (como alguns sugeriam que pudesse ser - Filio Patris, filhinho do papá); em suma, um verdadeiro mistério filológico para alimentar as teologias dos séculos vindouros.

Os mosquitos atacavam em grandes enxames e, por maior que fosse o número dos que morriam sob as palmadas dos hueireses, vinham sempre mais. Picavam até só restar um cadáver exangue e passavam a nova vítima.

O rei Trompo dormia com uma real rede mosquiteira e fizera-se guardar por um Corpo de Reais Mosquiteiros, treinados no uso dos seus floretes afiados até se tornarem exímios em fazer espetadas de mosquitos. O zelo dos Mosquiteiros, no entanto, não evitou que os mosquitos acabassem por descobrir caminho para a real câmara pelo buraco da fechadura, tendo havido grande confusão entre a mosquitada quando se depararam com a cortina de seda ungida com urina de bode que encerrava o leito de Sua Pequena Majestade.

Tanto zumbiram e zurziram que o Rei, impedido de dormir durante várias noites seguidas, entrou em delírio. Saía da protecção dos cristais de ureia e carregava nas bestinhas com o seu montante afiado, procurando cortá-los em dois. Apesar do rigoroso treino e da sua compleição exageradamente atlética, como era moda entre os jovens daquele tempo, acabava por cansar-se e voltava a refugiar-se debaixo do dossel, impedido de dormir pela barulheira constante, entregue a cada vez mais negros pensamentos.

O delírio arrastava-se para uma demência cada vez mais persistente; piorou um dia, quando o rei saíu dos seus aposentos, nú e armado com um cinto de couro, arremessando o cinto como um chicote contra as paredes, segundo ele para atingir os temíveis mosquitos de sete ferrões. Que havia de brandir o cinto incessantemente até as paredes ficarem cobertas de pequenas pintas de sangue; até a cal desaparecer sob os cadáveres estripados dos ignominiosos insectos!, bradava. De facto, passadas mais umas noites esquizóides, o cinto começava a ganhar volume e as paredes exalavam um odor fétido a podridão.

Então, sem causa aparente que o justificasse, a praga retirou-se, tendo dizimado uma... eeh... décima parte da população de Hueiras, e instalou-se no Pântano das Visões. O rei adolescente, incurável já da sua loucura, perseguiu-os febrilmente, brandindo o cinto até se perder nas brenhas e nos charcos do paúl. Acabou por ser devorado por uma planta carnívora, de uma espécie autóctone dos pântanos hueirenses chamada Mordetrinca. Os sábios botânicos do Lugar não perderam tempo a procurar sossegar a população horrorizada, defendendo a Mordetrinca, que não ataca seres humanos - apenas queria apanhar o cinto.

Assim se perdeu o décimo rei de Hueiras, deixando um trono sem herdeiro e abrindo caminho à primeira e sangrenta guerra pela sucessão.

26 novembro, 2006

História de Barzubal, Décimo-Quarto Rei de Ueiras

Escrevo estas palavras sobre as pedras duras desta parede, convencido de que me sobreviverão. Refugiei-me nas masmorras do castelo, e não posso sair. Lá fora, a hedionda maldição que eu fiz cair sobre o meu reino de Ueiras continua o seu trabalho demolidor; pela frequência com que a terra treme, aqui em baixo, já não deve haver muito por derrubar na cidade; o castelo foi das primeiras construções a ser reduzida a escombros, e eu não posso sair.

Aproveito a pouca vida que me resta para redigir este testemunho, na esperança de que pelo menos estas paredes fiquem de pé quando tudo o mais tiver sido destruído. É com as entranhas dos vermes que encontro, que escrevo as minhas últimas palavras; parecem existir aqui em quantidades suficientes para o que me proporciono relatar. Sinto um prazer especial em trucidar as pequenas e viscosas lesmas contra a parede áspera, dado que é uma dessas vis criaturas que arrasta o seu ventre inchado por entre as ruínas da minha cidade, destruindo tudo o que apresente menor entropia do que a sua massa visceral. Uma lesma gigantesca, que eu, desgraçado e condenado seja a cozer em lume brando nos infernos do maldito submundo, soltei. Decidi apelidá-la de Gigalesma.

Eis a história, tragicamente simples, de como eu soltei tão odiosa besta. Se sair vivo daqui, dar-lhe-ei o título de “Faça você mesmo! Como criar um monstro com uma lesma e uma retrete de desintegração radiactiva”. Pois foi assim mesmo que eu, por fatalidade, procedi. Que a minha cabeça imploda na sua ignorância, em memória da cidade que fiz destruir e dos seus habitantes, que condenei a uma morte horrenda. Confesso, a quem ler as minhas últimas palavras que, possuído pela vil luxúria que deita por terra a dignidade de um homem fraco, traí a minha senhora, morta pela visão aterradora do monstro Gigalesma e pela fragilidade do seu coração inocente, que agora me olha com complacência e perdão a partir do seu paraíso de esquecimento; com a sua massa encefálica continuo o meu relato, esgotados que estão os vermes mais acessíveis desta catacumba.

Tendo-me dirigido à cozinha do castelo, na madrugada do último dia em que os meus olhos contemplaram a beleza dos telhados desta cidade-mártir, com o propósito de tomar pela força uma voluptuosa cozinheira... Eis que o meu pé descalço fica preso em algo de viscosamente peganhento, quase me derrubando e acordando o pessoal do serviço da cozinha. Chegando a mão ao pé para me libertar, reparei que tinha pisado uma lesma.

Maldito verme imundo conspurcando a minha cozinha!... Num violento gesto de repulsa, arremessei o cadáver estripado para dentro da cisterna, uma espécie de desintegrador radiactivo por onde os detritos domésticos passavam todos antes de serem despejados no fosso. Ai de mim, que atitude irreflectida! O desintegrador tinha um efeito neutralizador em matéria inerte, mas os seus efeitos sobre seres animados com o sopro da vida estavam ainda mal estudados, e a maldita lesma, se já não estava bem viva, também não estava bem morta...

Na altura, foi pensamento que não me ocorreu. Chegando aos alojamentos da criadagem, preparava-me para abrir a porta quando, num estrondo ensurdecedor, uma enorme massa orgânica irrompe pelo corredor, vinda da cozinha, derrubando as paredes com a própria pressão do seu inconcebível volume. Ai de mim, era a lesma, agora tornada Gigalesma, e se eu, numa atitude de cobardia, me precipitei, em fuga, pela escadaria acima, já a criadagem ficava esmigalhada pelos blocos de granito soltos pela passagem da besta impura.

Alimentando-se exclusivamente de detritos orgânicos, a bicha viu naquela gente moribunda bom petisco e demorou-se a saciar a sua fome. Entretanto, eu, esquecido da luxúria que antes me atormentava a virilidade, corri para a segurança dos aposentos da rainha, onde minha senhora acordara com o estremecer do castelo. Assustada ainda mais com a minha entrada, rasgado e ofegante, ela empalideceu com o estrondo cada vez mais próximo e quis saber que praga tinha Deus enviado desta vez para castigar a ignomínia humana. E, ó martírio!, o seu coração frágil não aguentou a visão do verme fazendo saltar a porta do quarto e espremendo-se para dentro, em busca de mais pasto.

Procurando, desesperadamente, salvar a dignidade desta casa e a minha vida, atirei o corpo inerte daquela infeliz mulher pela janela e saltei de seguida, de um altura de quarenta degraus, para o pátio do castelo. Aterrei amparado pelo cadáver da minha senhora - mesmo traído repetidamente, e morta por minha incúria, ainda me salvava a vida!

Por essa razão, para que não fosse devorado pelo monstro, arrastei o féretro comigo quando fugia para as masmorras, soando a trombeta de alarme, enquanto o monstro flácido escorria pela janela abaixo. Consegui chegar aqui e tranquei a única passagem para o exterior. Pouco depois, ouvi o barulho de muitos pedregulhos acumulando-se do outro lado da porta, enquanto as fundações do castelo tremiam e amaçavam ceder. Assim fiquei encurralado, sem qualquer esperança de sair.

Durante dias tenho vivido fechado nestas caves, ouvindo o arrastar do ventre da monstruosidade mutante pelas ruas da cidade, verdadeira dispensa para quem se alimenta exclusivamente de detritos orgânicos... Chorei pela última vez a minha senhora há dias, ou ao que me parecem dias. Tão perto do fim, tem sido ainda ela que me mantém vivo, enquanto a vou assando nos archotes das paredes. O seu crânio está quase vazio, agora.

Pouco mais posso escrever... Toda a minha esperança está em que alguém de coração intrépido vingue o meu povo acabando com a existência da criatura hedionda... Para o que resta dos meus dias não me resta esperança nenhuma.

A Porta do Submundo II

A Porta do Sub-Mundo foi aberta pela primeira vez no tempo de Amagadão, o nono rei. O seu filho, Gualro, que teria sido o décimo rei, foi convencido pelos republicanos de O’Lispo de que uma pessoa não tinha o direito de governar somente pelo nascimento; foi tudo quanto o Infante foi capaz de aprender. Educado na prática das armas e dos torneios, era incapaz de apreender conceitos tão abstractos como o de “governar pela vontade do povo”, hoje tão em voga. Assim, Gualro propôs aos seus correligionários que, a partir do seu reinado, todos os Infantes devessem provar o seu mérito se pretendessem suceder a seu pai no trono; bem assim como todos os varões da nobreza.

Frustrados, os republicanos riscaram Gualro das suas listas e o rei, Amagadão, tão satisfeito pela boa ideia do filho como pelo facto de ele próprio, que já era rei, ficar dispensado da prova de mérito, promulgou a proposta e dela fez lei. Constituiu-se assim a conhecida Casa do Mérito, que conferia tarefas aos fidalgotes aspirantes a herdeiros: uma boa forma de encontrar “voluntários” para aquelas coisas que ninguém quer fazer, tais como salvar camponeses dos Pântanos das Visões, passar mensagens para o outro lado da Floresta ou mesmo partir em missão de paz para O’Lispo, levendo as palavras apaziguadoras de um rei em idade já demasiado avançada para sentir o mesmo entusiasmo que os seus súbditos pela guerra entre os dois estados, por estes constantemente atiçada.

Gualro, como primreiro Chanceler da Casa do Mérito, decidiu atribuír-se uma tarefa “digna de um futuro rei”. Numa atitude de orgulho irreflectido, contestada em todos os círculos e expressamente proibida pelo rei, desafiou o seu destino, os seus conterrâneos e as suas capacidades, marchando para o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes para abrir a Porta do Sub-Mundo e matar o gigante Tripas, trazendo de volta as suas três cabeças. O gigante tinha três olhos (um por cabeça), três braços e três pernas e era impressionante na sua fealdade. Era a criatura mais obesa do Sub-Mundo, sustentando as banhas, que lhe caíam como um manto, com cintas de couro. Usava três chicotes com espinhos na ponta, que brandia com as três mãos e aterrorizava os sonhos dos adolescentes, impedindo-os de terem um desenvolvimento normal; os adolescentes possuídos eram fechado no mosteiro de L’Seia, cujos monges eram auto-flageladores toda a vida e tinham publicado obras em que se considerava que Deus estava louco, que o seu Espírito Santo voava perdido de amores por meia dúzia de pombecas adolescentes em O’Lispo e os homens entregues à inevitabilidade dos infernos após a morte – pelo que melhor era irem‑se preparando em vida.

Como é evidente, esta popular filosofia não era nada saudável para o reino. Tendo os tormentos eternos como algo inevitável, as pessoas não se esforçariam por lhes escapar. Os flageladores de L’Seia eram vistos como desesperados, abominações; se saiam do seu convento, eram perseguidos pelos soldados e evitados pelos camponeses.

Gualro acreditava que matando o monstro Tripas, a doença dos L’Seus terminaria e que era obrigação sua, a bem da paz do seu futuro reino, levar a cabo esta tarefa.

Partiu sozinho, seguido pela guarda real que, por ordem do monarca, seu pai, deveria impedi-lo de levar a cabo esse projecto. Os Velhos do Restelo, outra confraria monástica bastante mais popular e carismática do que os L’Seus e cujo mosteiro se situava à beira-Tejo, preconizaram desgraças que adviriam da atitude insensata do jovem príncipe. Com efeito, este abriu a pesada porta de basalto e entrou no Sub-Mundo, em busca do gigante. Nunca mais foi visto, mas o seu equipamento foi encontrado disperso mais abaixo nas margens do rio Tejo.

Durante semanas viveu-se um pesado luto em Ueiras, embora a discrição fosse imposta a todos. Pretendia-se evitar que em O’Lispo se soubesse que a cidade estava sem herdeiro, indo o monarca já avançado no seu oitavo decénio. Este teve que repudiar e condenar à morte a sua velha companheira de sempre, a raínha, para casar com uma jovem fértil que lhe restituisse um herdeiro.

Um ano depois, Ueiras estava de novo em festa, com o nascimento do Infante Trompo; entretanto, o rei mandara fechar de novo a Porta do Sub-Mundo, não fossem as criaturas vis dos Infernos escapar-se para as Terras Livres. Os Velhos do Restelo agoiraram desgraças para os dias do Infante Trompo, pois as portas, uma vez abertas, não podiam ser de novo fechadas sem o recurso a palavras de poder que se tinham perdido na aurora dos tempos. Trompo estava ainda, segundo os Velhos, marcado desde o nascimento pelo orgulho do seu meio-irmão e pelo assassínio da primeira mulher do rei.

A Porta do Sub-Mundo I

Este livro remete-nos para a tradição mais antiga do Lugar de Ueiras. Foi, provavelmente, copiada pelos irmãos Marcos e Ludius (conjectura suportada porque um conjunto de manuscritos sobre esses tempos fazia parte do volume de pergaminhos). A intenção dos monges era - tudo leva a crer nisso - compilar na sua crónica alguma da Tradição anterior. Não se conhecem escritos mais antigos do que estes que se refiram aos tempos das primeiras dinastias do Lugar, nem referências a obras dessa natureza. Sabe-se, contudo, que o Velho da Montanha possuia na sua torre, em Sintra, a mais completa biblioteca de todos os reinos do Lugar. Marcos e Ludius eram dados como próximos do Velho e acredita-se na possibilidade de terem usado como fonte a sua biblioteca. Outra hipótese plausível, fazendo fé no testemunho dos próprios acerca das excelência da gente do Lugar - em especial, os Amarenses - para contar histórias, é que os monges tenham escrito, eles próprios, uma antologia da tradição oral.

O texto original seria, no entanto, praticamente contemporâneo dos dois monges. As terras do Alto Tejo não são, geralmente, referidas na bibliografia Ueirense que chegou até aos nossos dias, exceptuando a mais recente, escrita nos anos que antecederam a destruição do Lugar.

Começa aqui o texto dos irmãos Marcus e Ludius:

Muito acima no seu curso, o Rio Tejo atravessa o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes. No fundo da profunda garganta, onde a luz do Sol nunca chega, existe uma poderosa fortaleza de pedra. Acreditou-se durante muito tempo que fora construída em tempos imemoriais e ocupada para defender de inimigos a passagem das montanhas; sabe-se que até ao tempo do rei Bartolomeu I de El-Shish se chegou a manter aí uma guarnição permanente, mas poucos sabem a razão porque foi abandonada. Os que afirmam saber alguma coisa dizem que soldados desapareciam misteriosamente quando se afastavam em patrulha, sem que em toda a sua história a fortaleza tenha alguma vez sido atacada pelo inimigo; dos monarcas que se sucederam após Bartolomeu I nenhum insistiu em manter a fortaleza ocupada e esta mantém-se até aos nossos dias abandonada e fora do conhecimento da maioria.

Recentemente, contudo, tem-se ouvido mencionar esse lugar, associado a histórias terríveis. As vastas terras do Alto Tejo, montanhosas e cobertas de matos e florestas, há muito que são evitadas por serem desertas e abrigarem bandidos; ultimamente ouve-se falar de espectros que vivem nas sombras e outras criaturas terríves são avistadas em plena luz do dia. Diz-se, também, que todas estas hediondas criaturas provêm de um só lugar: o Desfiladeiro dos Ventos Ululantes.

Uma antiga tradição diz que, no tempo em que os antepassados dos primeiros habitantes do Lugar começaram a chegar, se abriu, no vale do Tejo, uma porta para o Sub-Mundo. Toda a espécie de criaturas imundas podia saír para matar, aterrorizar e conspurcar os habitantes da região e os reis desse tempo tinham selado a Porta com pedra, fogo e encantamentos e um alto sacerdote vigiava esse lugar, escolhido entre os mais sábios e poderosos, consagrando-se a essa missão até ao soltar do seu último suspiro. Muitos túmulos de sacerdotes foram aí construídos, até que a ameaça foi considerada extinta e o lugar foi abandonado.

Escritos desse tempo, quase desconhecidos, dizem que o submundo se estendia por baixo de toda a superfície das terras e de todos os mares e que fora criado po Deus para aprisionar todas as criaturas perversas a que dera origem, por engano e, assim, fingir que não existiam.

Três passagens sobreviveram: uma num vale terrestre, uma no oceano e outra, ainda, nas profundezas ardentes de um vulcão activo. O Espírito Santo fechara as três com a sua magia; permaneceriam escondidas até que os homens as descobriram, pois podiam ouvir o eco dos apelos malditos com o lado escuro do seu coração. Abriram-nas e soltaram exércitos de espíritos furiosos que assolaram os montes e vales durante séculos, até a própria terra gemer e o submundo colapsar, sob o peso de tanta perfídia. Foram os tempos terríveis da Orogenia Sintrina, quando os dragões se escaparam do submundo e tomaram por lares as montanhas mais altas.

Desse imenso subterrâneo original restaram algumas cavernas, grutas, desfiladeiros e outros lugares onde a luz do Sol nunca brilha, lugares que se distiguem pela atmosfera de maldade que neles se respira. Uma vasta caverna, um pouco maior do que o Lugar de Oeiras no tempo da sua maior extensão, não colapsou, devido ao poder exercido pelos seres especialmente poderosos que a habitavam. Aqui acorriam todas as noites os seres negros que não suportavam a luz do dia, agora combatidos pelas milícias de gente do Lugar. A única porta, a porta terrestre, acabou por ser selada e o horror aí encerrado, lentamente, foi desaparecendo das memórias.

Esta tradição afirma que essa última porta era aquela que se situava no Desfiladeiro e que a fortaleza fora construída no tempo em que os homens do Lugar eram nobres e fortes; e a sua força era suficiente para manter o mal encerrado.

À medida o homens poder destes aumentou, porém, tornaram-se arrogantes e a sua vigilância enfraqueceu. No tempo de Bartolomeu I os campos eram ricos e as estradas seguras, as cidades estavam cheias de mercadorias exóticas, mas as fronteiras do Lugar já se encontravam em recuo, pressionadas por inimigos atraídos pela opulência da vida Ueirense. A bravura e o estudo eram cada vez menos procurados pelos jovens das cidades, que faziam por se promover no seio da sua sociedade abastada unicamente por vaidade; as terras de fronteira viam muitos despedir-se de uma vida de vigilância e incerteza e correr também eles para o luxo das cidades, pelo que fora necessário instalar guarnições e construír fortalezas nas terras quase desertas do exterior.

Com o passar do tempo, também essas fortalezas foram abandonadas; rumores de criaturas malignas a serem vistas nos campos e até nas estradas foram chegando de regiões cada vez mais próximas do centro do Lugar.

25 novembro, 2006

Das Guerras Públicas V

E do nacional Jogo da Moeda.

Entretanto, os chineses morriam nos seus treinos de Karaté. E os brasileiros morriam nos treinos de capoeira. E os africanos ficavam malucos nos treinos de Voo-Doo. E os europeus tombavam às centenas nos treinos de cavalaria. E os índios morriam na caça ao bisonte. E os árabes morriam de sede no deserto. E os alentejanos morriam de fome nas searas. E os nova-iorquinos morriam de frio no inverno e de calor no verão. E os japoneses estavam desempregados e faziam hara-kiri.

Só no plácido Lugar de Ueiras se debatia civilizadamente, no Concílio do Espermatozóide, sobre questões de real importância.

Urge agora fazer referência ao modo repentino como a civilidade acabou.

Bastou os Salusianos terem proposto a perseguição dos hereges para esta ser aprovada por unanimidade (com os votos contra de São Julião, Santo Amaro, Bugio e Caxias, e a abstenção do Velho - que achou a ideia absurda e dissolveu o Concílio, que foi reconvocado na Abadia). Os presentes na assembleia não tardaram a desentender-se pois Dona Juliana aliou-se aos hereges enquanto Dom Eduardo acabou por se aliar aos padres (convém lembrar que o convento dos Salusianos, ou as suas ruínas, ficavam em Caxias e os padres iam investir uma boa soma na sua reconstrução e alargamento). (Além disso, tinha corrido a notícia em Santo Amaro de que Dona Juliana e Dom Eduardo se encontravam secretamente em São Julião enquanto os seus exércitos se degladiavam em Caxias; podia ter sido ponderada pelos monarcas a importância de desmentir esses boatos).

Santo Amaro manteve-se novamente neutral, pois não tinha dinheiro para armar um exército. Além disso, há um curioso pormenor que não foi referido até aqui sobre os Amarenses : estavam-se nas tintas.

Mas nem todos! Snaga continuava a gerir o seu banco de informações, para o qual o principal investimento vinha da taberna do Castanheira - que tanto espiava para Dom Eduardo como se bandeava para o lado dos heréticos de São Julião. E Stofe-Lin, que agora dormia debaixo da ponte sobre o Espermatozóide (tendo por companhia os P.A.s do Cão), alistou-se na milícia de Analgésico-lá-do-fundo que viera pedir apoio no combate aos piratas de Softe-Uere, mas que encontrara por estas bandas uma guerra que se adivinhava muito mais interessante.

Quem declarou imediatamente guerra ao capitão Chouriço foi Dona Filipa, pois achou que os seus marinheiros precisavam de mais acção e não se queria meter nos assuntos centrais do Lugar (precisando, a contenda entre os heréticos de Dona Juliana e os Salusianos, apoiados por Dom Eduardo), pois não queria comprometer a preciosa neutralidade que tanto jeito fazia ao negócio do seu primo, taberneiro em Santo Amaro.

Assim, numa bela manhã de lua nova encontravam-se as estepes de além-marianas cobertas de exércitos. Gente de São Julião, de Caxias e de Analgésico-lá-do-fundo, Marianas, índios da Madorna, MLÚs (povo pseudo-civilizado que habitava o litoral de Cascais depredando garrentos nas saídas dos esgotos), todos se tinham encontrado num lugar chamado São Pedro e preparavam-se para batalhar. Bem, no meio deles circulava Jota Pê Benetton, puxando um frigorífico cheio de Coca-Cola e apregoando o seu maravilhoso re-estabelecedor de forças. A dado momento, Dona Juliana dos heréticos e Dom Eduardo dos padres encontraram-se frente-a-frente no centro do campo.

- Comecem vocês! - gritou Dona Juliana.
- Minha senhora, nós nunca começamos. Comecem vocês mesmos! - replicou Dom Eduardo.
- Eu insisto, Locomotiva.
- Não, não, não, primeiro as senhoras.
- Não me vai insultar com palavras sexistas!
- Não me vai ofender com a sua recusa!
- Não me vai ultrajar com a sua insistência!

Vendo que a coisa não avançava e, temendo que a batalha nunca se viesse a realizar, perdendo assim o seu negócio de valas comuns na Parede, Jota Pê Benetton interrompeu a contenda e mostrou uma moeda, dizendo que a atiraria ao ar: Dona Juliana ficaria com “cara” uma vez que esta face tinha cunhada a sua efigie. Dom Eduardo ficaria com coroa. Quem ganhasse deixava o outro começar. Os dois teimosos líderes concordaram mas alguém gritou, antes que Jota Pê atirasse a moeda ao ar: “Olha a moeda!”.

Foi quanto bastou: a batalha começou por si mesma. Saltaram os índios da Madorna sobre o infeliz comerciante e sobre eles saltaram os padres. Quando a moeda foi chutada para longe todos correram atrás dela tentando chutá-la ou, pelo menos era essa a intenção que acusavam. Mas a moeda era apenas uma e pequenina e os pés eram muitos e grandes. E, Oh glória divina!, que espectáculo sublime e quão belo era de se ver. A temível e sangrenta batalha que se arrastou por dias e meses, tendo ficado conhecida como Batalha de São Pedro, culminou com a vitória do dito santo que, a páginas tantas resolveu entrar por conta própria, tendo a injusta vantagem de possuir uma enorme chave de ouro com a qual dava tacadas na moeda.

Assim que o santo derrotou os exércitos que se degladiavam pela moeda, estes retiraram-se para as suas terras tristes e acabrunhados, tendo havido apenas uma vítima mortal: a empresa de valas comuns de Jota Pê Benetton.

O Jogo da Moeda tornou-se o desporto nacional no Lugar de Ueiras, com regras bem definidas:

Num campo com duas balizas, uma em frente da outra, jogavam duas equipas que tentavam chutar a moeda para dentro da baliza adversária; mas isto (chamado “golo”) só valia um ponto; dois pontos valia acertar com a moeda na cabeça do guarda-redes e cinco pontos chutar nas canelas do adversário em vez de na moeda; “mosh” ao árbitro valia dez pontos.
Em Santo Amaro, todavia, não havia moedas e então usava-se uma bola de madeira. As regras eram as mesmas, acrescentando-se os quinze pontos por acertar no estômago do guarda-redes e os vinte pontos pelo seu knock-out. Para mais, os pontos eram superficiais pois o jogo acabava quando o árbitro fugia e ganhava a equipe que mais vezes tivesse obrigado a outra a reanimar guarda-redes.

O guarda-redes da equipe de Santo Amaro era Stófe-Lin.

O Concílio do Espermatozóide

Nesses tempos, o Velho da Montanha voltou a dar que falar.

Foram os tempos em que se organizou um concílio conhecido doravante como Concílio do Espermatozóide (por ter tido lugar numa caverna perto da nascente da ribeira homónima) que logrou unificar a ciência com a religião. Foi o início da Revolução Teológica, que arrastou consigo a queda da reverendíssimo Taveira, teólogo dos mais radicais, que defendia que a droga e o futebol americano já eram correntes em Sodoma e que Gomorra era responsável, com o seu pecado, pelo aparecimento da terrível doença venérea Gomorreia. Ora, o Velho pretendia apenas que a religião Salusiana aceitasse a validade da Teoria científica sobre as coisas do mundo físico e remetesse a Teologia para o domínio da Metafísica. Para tal, valeu-se principalmente de um argumento.

Toda a gente sabe que THEO é o antepassado grego do DEUS latino e que RIA (não do verbo RIR) era o significado de rio segundo a conversão filológica revelada à pastorinha Lúcia pela feminista Virgem Maria. Por isso, TEORIA (THEO + RIA - H) significava “conhecimento que fluía de Deus” ou Revelação.

Alguns padres não ficaram convencidos mas o Velho deu um exemplo. Enunciou uma Teoria segundo a qual “nada pode mover-se mais depressa do que a luz”. Os padres todos discordaram: Deus era omnipotente, podia mover-se mais depressa do que tudo que ele quisesse. O Velho replicou: Deus era Omnipresente, por isso estava em toda a parte; consequentemente, não precisava de se mover para viajar desde o paraíso até à Terra, ou entre quaisquer outros dois lugares pois estava em ambos os sítios ao mesmo tempo.

Mas o abade Rocha, nomeado pela Abadia dos Salusianos do Estoril - recentemente construída no deserto de Cascais com o piedoso objectivo de pregar e converter os selvagens que por aí andassem - levantou um grave problema: se Deus era omnipresente também era omnividente e, como tal, quando alguém “aponta” de indicador espetado pode muito bem acertar no olho d’Ele.

O Velho defendeu-se dizendo que Deus era omnisciente e que por isso saberia sempre como e quando se desviar de “indicadores espetados”. Como Ser Absoluto e dado que o Ser é de categoria superior ao Não Ser, bastava a Deus querer que no lugar do fura-bolos em riste não fosse o seu supremo traseiro para se furtar a um indesejado clíster. O Velho conhecia bem as mentes porcas dos seus adversários.

Frei Antunes perdeu as estribeiras e ameaçou afogar alguém na ribeira do Espermatozóide. Mas um humilde monge colocou ainda o problema de que se Deus era omnipresente, ele corria o risco de O colocar, sem saber, no microondas, o que enfureceu ainda mais Frei Antunes. Mas o Velho prontamente o acalmou, e sossegou também o monge dizendo que Deus era também omnívoro, pelo que não corria o risco de ter alguma indigestão com o que quer que ele gostasse de cozinhar no microondas.

Ainda a omnipresença de Deus levantou outro problema: e se Deus estivesse no leite de vaca que o Cura Miguel bebia sempre no pequeno-almoço? Que não se preocupasse, respondeu imediatamente aquele monge, entusiasmado com o protagonismo do seu discurso e despreocupado da questão de qual das facções ali estava a representar. Porque Deus, omnipotente, não se deixaria certamente digerir e, ao fim de algumas horas, estava cá fora de novo. Mas daqui adveio nova discordância: nesse caso, podia dar-se o facto de muitos dejectos humanos serem sagrados por terem estado na companhia de Nosso Senhor. O problema resolver-se-ia, disse outro monge, que era administrador de cemitérios, declarando os aterros sanitários lugares sagrados.

Perante tudo isto o beato Zé Bosco enfureceu-se e (ironizando, claro) perguntou porque é que não atribuíam à omnipotência do Senhor as características particulares da ribeira do Espermatozóide (era procurada por mulheres e homens que, nas fragas banhadas pelas suas águas, procuravam a cura para a infertilidade). Mas, para sua surpresa, os assistentes levaram-no muito a sério e agora, no centro do lago donde parte a ribeira, ergue-se uma estátua de Nosso Senhor Omnipotente sorrindo voltado para a estátua de Nossa Senhora da Fertilidade, que já desde à muito se erguia no alto da torre do Bugio. A uma e a outra passaram a acorrer respectivamente multidões de peregrinas e peregrinos para fazer promessas aos padroeiros da fertilidade, esperando, com isso, resolver os seus problemas de descendência.

Tendo sido esta a primeira resolução tomada no Concílio, teve que se deliberar sobre a perseguição ou não dos hereges de Madorna, no deserto de Cascais. Estes desafiavam a autoridade da Abadia com o seu cepticismo afirmando que Deus, imaterial, não podia de modo algum ter dado um filho a Maria, nem tão pouco o podia ter feito o seu fiel criado Espírito Santo, pois este era uma pomba. Por isso diziam, ou Maria e José tiveram o seu filho como qualquer mortal, desacreditando assim o Pecado Original, ou foi o Anjo Gabriel que tomou conta do assunto em nome do omnipotência do Senhor. Então, nesse caso se até os anjos pecam, e como os anjos são anjos e como tal não podem pecar, pecar não é pecado, o que vai dar de novo ao descrédito do Pecado Original. Nesta doutrina baseavam os hereges o seu comportamento e a sua seita, encabeçada pelo índio Prumo Espadinha de Madorna, chamava-se Baccanalle - Toullejour ou, traduzindo, Bacanal-Todo-o-dia.

Das Guerras Públicas IV

Nas terras de Dom Eduardo tinha-se desenrolado uma sangrenta batalha. Poucos eram já os combates travados ocasionalmente, uma vez que estavam todos exaustos e enlameados. Por todo o lado se viam lanças partidas, capas rasgadas, torradeiras avariadas e jipes empanados. De entre tanto lixo erguia-se a torre do casino, a única construção ainda de pé em todo o convento dos Salusianos. A esta torre subiu um padre velho e careca. Ergueu os braços e falou. Enquanto falava, a terra parou:

- Ai ai ai, seus patifórios! Deviam ter vergonha. Esfregam-se e brincam na lama que nem cães! Parecem pirralhos, um peido amarelo bem forte e feio para vocês!

Uma voz interrompeu-o vinda dos campos destruídos em volta: - Ó Taveira, vais à feira ?

Os olhos do padre chisparam.

- Sempre que oiço esta frase fico PIÚRSO! DANADO! Completamente DESSINCRONIZADO!
- Bem feito e que ela te dessincronize a careca!
- E se você não se cala arranjo-lhe um lugar no cemitério e dessincronizo-lhe a ossada, meu grandessíssimo e alternadíssimo camelo.

- Olé camelos! Camelos novinhos, alguém quer comprar? Vou à feira de Sto. Amaro vender camelos, olé! Trolaró, alegre pó, pás catrapás! O velho Jota Pê Benetton é um tipo munt’alegre!

A Primeira Catástrofe

O incidente do milésimo quinto vendedor na feira dos mil e quatro não durou muito tempo na memória dos Amarenses. Restabelecido o equilibrio na feira, tudo voltou à normalidade; como não havia dinheiro, trocavam-se bens por boatos e mexericos, boatos e mexericos por calúnias e intrigas; assim se passou outro dia de feira até à chegada de um viajante esbaforido vindo de Sintra:

- Trago boas notícias e péssimas notícias.
- Conta primeiro as boas !
- O grande sábio Gottschalk fez outra descoberta fenomenal.

Gritos de VIVA! ecoaram por todo o recinto. Gottshalk era um ancião simpático e querido de todos.

- Então conta lá as más!
- O grande sábio Gottschalk descobriu que um grande meteorito vai cair aqui perto!

O pânico foi geral, mas nesse momento um grito alertou para a aproximação de uma grande bola de fogo. Todos os presentes se estenderam ao comprido no chão. O meteorito vinha a uma velocidade incrível, quase na horizontal, rasando os telhados. Quando estava quase a chegar ao fim da vila, começou a arrebatar chaminés e antenas parabólicas.

- Vai passar! - dizia-se.

Mas não passou. Esmigalhou-se contra a última casa da população à beira-praia e desfê-la em frangalhos. Uma desgraçada criatura de aspecto mongolóide com dentes de castor e uma enorme poupa cheia de cal e cascalho arrastou-se para fora dos escombros.

- Stófe-lin ! - exclamaram alguns, reconhecendo o infeliz dono da oficina que tinha vindo abaixo - Bem vindo aos desempregados!
- Eu morava ali !... - gemeu Stófe-lin.
- Então, bem vindo aos desalojados!

A Feira dos Mil e Quatro

A manhã acordou radiosa sobre os tectos dos radiantes Amarenses (os Amarenses andavam radiantes desde que descobriram que a vida era muito mais simples sem dinheiro). Era dia de feira e, no descampado em frente do castelo, montaram-se mil e quatro barracas de mil e quatro cores. Os feirantes corriam de um lado para o outro, miravam a sua montra, experimentavam doutro ângulo, arrumavam, desarrumavam e tornavam a arrumar os seus produtos nas bancadas. Mil quatro bandeiras esvoaçavam no recinto. Em breve, mil e quatro feirantes apregoariam mil e quatro pregões para os muitas vezes mil e quatro compradores que viriam.

Era assim todas as semanas.

Mas dessa vez apareceu mais um vendedor! Ficaram mil e cinco barracas de mil e cinco cores, das quais se erguiam mil e cinco bandeiras de mil e cinco vendedores atarefados.

O equílibrio da feira tinha sido quebrado. Os feirantes e visitantes reuniram-se na maior confusão à volta do intruso. Este esfregava as mãos húmidas com nervosa satisfação, enquanto o seu ajudante abria a carroça ambulante.

Era Jota Pê Benetton e estava satsifeitíssimo por ter a feira toda para si. Começou a apregoar os seus produtos:

“Senhoras e senhores, trago aqui comigo uma vasta gama de produtos milagrosos e de qualidade! Este aqui, por exemplo...” - e mostrou um frasquinho com creme côr-de-rosa - “é um produto para as borbulhas da cara. Espalha-se por toda a superfície facial e, com três ou quatro utilizações, borbulhas nem vê-las!”
- Vê-se logo que nunca o usas ! - ouviu-se entre a assistência. O sorriso de J. P. Benetton ficou um bocado amarelo.
“Tenho aqui este detergente para retretes. Muito seguro, muito eficaz, mata todos ps germes ...”
- E mata os vermes também? Devias usá-lo todos os dias parvalhão! - as gargalhadas inundaram o recinto. O sorriso do vendedor ficou um bocado cor-de-merda.
“Mas vocês, que vivem neste belo lugar à beira-rio, talvez prefiram um destes chapeús de palha voadores!”

Nesse momento uma rabanada de vento arrancou o chapéu da mão de Jota Pê Benetton e levou-o para longe.
- Olha, aquele voou mesmo - comentou-se entre a assistência - Não te preocupes, chapéus há muitos, ó palerma!

O sorriso tinha desaparecido da cara do vendedor, sem deixar rasto.

“Por favor !” - suplicou - “Só estou a tentar fazer negócio, tenham piedade! Se não me querem ouvir vão-se embora, mas não me arruinem a reputação!”

A assistência “teve piedade” e foi-se embora deixando o vendedor, a sua reputção e o ajudante às moscas. Estes não tiveram outro remédio senão desamparar a loja e ir-se embora.

- E não voltes, imbecil!

O vendedor parou e virou-se para trás:

- Não voltarei. Vou para S. Julião onde talvez as pessoas sejam mais inteligentes que vocês !
- E não te esqueças de nos escrever a mandar saudades que cá não deixas nenhumas!
- Charlatão !
- Parvalhão !
- Cara de cão ! - gritaram os Amarenses.
- E boca de broche broca (censurado 16-8-94)! - acrescentou um puto.

O vendedor afastou-se a praguejar: "Chapéus há muitos ó palerma ... francamente!"

Foi então que um sujeito um sujeito lhe saíu ao caminho:

- Muito bom dia! Estava há pouco na feira quando você tentou vender os seus produtos. Achei-os bastante interessantes. De facto, nem consigo decidir qual deles prefiro, por isso quero comprar todos. Quanto é que faz tudo?

O vendedor nem queria acreditar na sua sorte, mas resolveu aproveitar a situação:

- O stock todo vale 300 moedas, senhor. Se quiser até pode levar a carroça, o burro e o meu ajudante também.
- Negócio fechado.

O homem fez sinal ao ajudante para manobrar burro e carroça para voltar a Santo Amaro, enquanto mexia num molho de papeis.

- É o meu dinheiro? - inquiriu nervosamente o vendedor.
- Qual dinheiro? Aqui em Sto Amaro não temos disso, as moedas de qualquer metal são automaticamente convertidas na moeda local - informações! O seu material vale pelo menos três segredos de estado. Terá que os debitar na minha conta no banco do Sr. Snaga. Mas, como o Sr. Snaga sou eu, posso pagar-lhe já. O que quer saber? Quem foi o último amante de Dona Juliana? Talvez. Ou a palavra-senha do bando do Cão? Talvez prefira saber quem são os espiões de Dom Eduardo Locomotiva que trabalham em Sto Amaro? Muito bem, eu passo-lhe o cheque com as informações.

Snaga rabiscar qualquer coisa numa folha do seu maço de papeis. Jota Pê Benetton, que não tinha muita agilidade mental para reagir a situações inesperadas, estava estupidificamente boquiaberto. Snaga parou de escrever e entregou ocheque ao vendedor.

- As suas informações, senhor. E aceito a sua oferta, levo também a carroça e o burro, mas pode ficar com o seu ajudante. Passe muito bem ! - e Snaga abalou em direcção a Sto Amaro.

O vendedor, quando recuperou a consciência, não conseguia acreditar no que se tinha passado. Deu um pontapé num calhau, partiu a perna e arrastou-se pela estrada fora em direcção a São Julião.

Pelo caminho deixou cair o talão com os segredos de Estado. E em Santo Amaro nunca se soube de ocasião em que valores perdidos fossem achados por quem os guardasse melhor. Os segredos andariam de mão em mão até terem causado todo o dano que, efectivamente, vieram a causar.

Das Guerras Públicas III

Eis a história que não se passou em Santo Amaro, mas perto, onde uma manhã de neblina e muito sono deu origem à sequência de acontecimentos para os quais tentámos, nas breves linhas que passaram, preparar o leitor.

Um dia (que ficou conhecido na história do lugar como “Dia da Invasão”) Dona Juliana acordou com uma miserabilíssima disposição. Ela teve de dormir por debaixo de um lixorioso Volkswagen Dobrowolfsky que encontrou na floresta onde ela se perdera no dia anterior, dia da caça aos P.A.s (tornou-se desporto nacional correr com uma bazuca atrás de P.A.s e mandar-lhes tiros). Nesta manhã, nada parecia correr bem. Encharcada de chuva nocturna, ela andou pelas ruas onde foi tratada como uma hilota e os passantes com hilariedade cuspiam-lhe e apalpavam-na. Começou a correr ainda protegendo o quadril dos apalpões. Finalmente, livre de tudo e sozinha, subiu a um montículo monte semeado de morangos. Daí ela pôde orientar-se, achando, por fim, o mais curto caminho para casa, isto é, o castelo, onde ela foi sagradissimamente entruvernada pelos criados do sítio. Mesmo depois de lavada e vestida, via-se a raiva como relâmpagos encarnados remoar desresgatoriamente o ar do quarto real onde ela costumava raivar.

Mas a raiva nunca forai tão grande como nesse dia. Tinha sido humilhada, descongrisada. As paredes do castelo vibraram quando ela teve a satanística ideia de mobilizar todas as suas tropas contra o inimigo Dom Eduardo. Este, com a calma de uma criança, nessa manhã dedicou-se a ler as cartas de namoro que tinha recebido. Esta boa disposição foi de algum modo fatal.

Ouviu, inesperadamente, o som da trombeta Juliana, horrendo, fero, ingente e temeroso; ouviu-o o monte Artabro (Sintra) e Guadiana (afluente insignificante do Espermatozóide). Atrás tornou as ondas de medroso. Correu ao mar o Tejo duvidoso (alegre Tejo? Agora já nem tanto, parecia mais preocupado). E as mães que o som terribil escuitaram aos peitos os seus filhinhos apertaram.

As tropas de Dom Eduardo Locomotiva, enfraquecidas por falta de droga e exercício caíam na batalha como água em dia de chuva. Os habitantes da terra atacada mobilizaram-se com garfos, facas, canas, raquetes, granadas, tanques, preservativos, lança-chamas e máquinas fotográficas. A temurelosifoskalosa batalha tomou o seu curso.

Completamente cercados por míriades de soldados, os habitantes de Caxias refugiaram-se no convento dos Salusianos, ordem religiosa protegida por Dom Eduardo. As legiões julianas dispuseram-se em torno do convento, utilizando a célebre táctica da coroa circular. A trompa de Dona Juliana soou três vezes - três vezes soou, tenebrosa e profunda. E, à roda do convento, as legiões marcharam três vezes, três vezes marcharam a gritar e pararam. O ar estava pesado e mudo. Os dois exércitos fitavam-se ameaçadoramente. À luz do luar brilhavam lâminas, elmos e cotas de malha. Um raio cortou o céu nublano.

- Por S. Julião !
- Por D. Bosco !

Um raio cortou o céu nublado.

D. Juliana, na sua torre no castelo de S. Julião, espreguiçou-se no leito de seda.

- Espero que os meus tipos se estejam a sair bem ... - disse ensonada e bocejou.

Relato de Evaristo Tenskadisto

“Muito bom dia, senhores leitores. Na qualidade de mastodondrício presidente (não, risca “presidente” e mete “dirigente”) da rinofrícita delegação observadora nas ilhas constituintes do arquipélago do Bugio, Huynesado de Dona Filipa do Farol (podes tirar “ilhas constituintes”, deixa só “no arquipélago”), tenho o dever (não, tenho o “prazer”) de lhes comunicar a periclitante situação que se viveu intensa, abarroada e ostensoriamente nestes últimos dias.

Com a abastecedora vantagem numérica de dois jogadores, os piratas do Bugio não encontraram qualquer resistência da parte dos dezontoladíssimos e paladiníssimos Ratos de São Julião nas corridas de pulgas-da-areia (não, tira isso que é para a secção desportiva).

Ia eu dizendo (e muito bem) que o Espírito Santo andava implacidicamente a passear as suas lumífonas labaredas pelos saudáveis (e saudosos) ares da foz do Tejo (alegre Tejo). Eis senão quando, ao riscar balisruradamente os céus com os tons rosados do meio-dia (hora local), recebe um incomensurável tele-fonograma digital de Deus, que lhe pedia para assumir a sua portentosa forma de pomba destilada e trazer a paz ao Lugar antes que este se dessincronizasse de vez. Mas o oleado Espírito teve azar e, como nos explicou melindrosa e magnifivilhosamente o grande sábio Gottschalk, as quantidades anastróficas de energia que soltou levaram a que, uma vez que

E = mc2 - m0c2 => ds =/= v0t2 + 1/2at2

uma pequena e arrufada partícula do seu bico invertesse a polaridade o que, segundo os Postulados do Comportamento Particular das Partículas de Gottshalk, levou à infeliz reacção que mesozoicamente metempsicoseou a pomba em ignóbil e açucalgada anti-matéria.

O arrulhante turbilhão que a anti-pomba originou perto do patavónico Castelo do Bugio depressa assumiu dimensões capazes de anexar toda a tágida bacia do Grande Rio, o cinzento Tejo (alegre Tejo). Dona Filipa, num acto de anfíbidico desespero, mandou chamar a bruxa MD (que se dava pelo prúrido título de Mistress of Darkness) a qual, a troco de epidémica quantia, seduziu o alternadíssimo Arcanjo Gabriel, que lá se deixou levar pelo dessintonizado desafio para um jogo de strip-poker em que, caso se desse a incomensurabilidade da sua derrota, prometia usar a sua potência para travar o crescimento do anti-mäelstrom. É claro que o Anjo, se não fosse um tão grandecíssimo e alternadíssimo camelo, teria logo verificado que a bruxa fez batota. Mas não e perdeu o jogo e, como os anjos não têm potência, faltou descarnadamente à sacral palavra dada e só conseguiu ganhar um lugar no desemprego que lhe dessincronizou os miolos.

Mas o Todo-poderoso, Piedoso, Generoso e Pedregoso, o Senhor nosso Deus, suserano de todas as tribos da azul Terra, mostrou ser magnânimo e contraiu o redemoinhante turbilhão num contraceptivo objecto, não maior do que um tomate, mas com a incrível massa de 0,3x1014 toneladas, o que lhe conferia a invicta aceleração gravitacional de 9,8x1013 ms-2 a qual, segundo a Teoria da Relatividade Estrepsídica de Gottschalk, implicava que nem a própria luz se poderia escapar de tal monstro, uma vez que

c < ve

Estranha e aliviadamente, o objecto apelidado posteriormente de Buraco Negro pelo Santo Padre, o papa Bosco IV, em nome do Pai, do Filho e do falecido Espírito Santo (que Deus o tenha), ia eu dizendo que a tal coisa permaneceu alvídicamente inactiva, o que os muitos crentes consideraram como mais um milagre pela Graça do magnânimo e estupefaciente Deus Nosso Senhor.

Evaristo Tenskadisto, RTU, algures no Arquipélago do Bugio. “

(O estilo inconfundível de) Evaristo Tenskadisto, em directo do fulcro da que poderia ter sido a maior catástrofe natural no Lugar desde a erupção do monte Peninha em Sintra, que submergiu a aldeia de Má-feira da Serra (se não tivesse havido outras, bem piores). Cá por mim, só me falta justificar a referência ao Velho da Montanha, o tão citado Gottschalk, que habitava o cume sempre branco da serra de Sintra, no imponente Palácio da Pena. Ninguém sabe o que ele é, nem quem ele é (à excepção, talvez, de Snaga). Alguns chamavam-lhe bruxo, outros consideravam-no apenas um cientista louco, uns achavam que era uma encarnação divina, outros chamavam-lhe Belzebú; outros, por fim, abstinham-se de comentários e diziam que era apenas um sábio e eram, provavelmente, os que mais se aproximavam da verdade. Só Snaga parecia saber tudo acerca do misterioso velho, que vivia com um círculo fechado de amigos no ponto mais isolado do Lugar. Dizia-se de Snaga que o velho e ele próprio eram o mesmo, manifestações diferentes da mesma pessoa, da mesma força, da mesma mentalidade.

O mais, não nos cabe aqui revelar).

Das Guerras Públicas II

Em Caxias, o Rei Eduardo estava de cama desde que, sozinho, conseguira parar um comboio que levava armas para os seus inimigos de São Julião. Ainda por cima, os piratas de Softe Uere tinham feito um embargo naval ao castelo, que já não podia receber alimentos por essa via. Em cima disto tudo, havia a já antiga escaramuça com os parvalhões dos servos do Jouço Malumoroth.

Em São Julião a coisa não estava melhor. Tinha-se espalhado uma peste chamada Piolhosis Analfabetis, transmitida por uma bactéria chamada Babebibobis Piolhosis que, por sua vez, era transportada por um rato chamado Rodens Analfabetis e só era perigosa em ambientes de pouca higiene. Os infectados eram designados por Piolhosos Analfabetos (vulgo P.A.s - leia-se "pê-ás"). Dona Juliana, senhora de bom coração, doou um terreno perto dos limites do Lugar (e bem longe do principado) à instituição que ficou de os curar, onde esta instalou um sanatório. Mas os palermas e ingratos P.A.s preferiram fugir e passear-se pelas ruas com as mãos, chapinhar nas poças de lama e coleccionar trocos fornecidos por colaboradores muito relutantes. Além disso, o seu lugar favorito nas praias eram as saídas dos esgotos. O mais imbecil de todos eles era um mutante nojento, meio-mocho-meio-cão (por acaso até se chamava Bufus Canis) e os “amigos” tratavam-no só por Mocho (apesar de os inimigos preferirem chamar-lhe Cão). O seu bando vivia nos esgotos e auto-intitulava-se Piolhosos Analfabetos “Ranho Verde” Organizados, ou P.A.R.V.O.s.

Tudo o que antes descrevi é explicável (mas não desculpável) pela forma como a Babebibósis Piolhosis actuava no juízo dos doentes.

Entretanto, nem no Huynesado de Dona Filipa tudo corria bem.

Do Dragão Pató

Para melhor compreendermos a periclitante acção que se desenrolará neste paraíso Ueirense, temos que recordar uma das mais relevantes catástrofes que os maus ventos de São Denis trouxeram ao pacífico (mas dessincronizado) povo do Lugar.

Logo após o eclodir da guerra (quer dizer, aquela entre Dona Juliana e Dom Eduardo, porque as “outras” já existiam há tanto tempo que o pessoal até se tinha esquecido delas), ia eu dizendo que, logo após o eclodir da guerra (entre Dona Juliana e Dom Eduardo) e da quebra do Tratado de Paço D’Arcos, passou por Santo Amaro o dragão Pató.

Aqui tenho de abrir um parêntesis. Os dragões deste tempo eram muito diferentes dos dragões do século vinte. Eram uns bichos cor-de-burro-quando-foge, com barriga de rato e cintura de vespa, cabeça de abutre e patas de caracol, só a cauda era de ser humano. Este, particularmente, tinha cabelo amarelo à panela e uma crista vermelha, enrugada e mole que lhe vinha desde a testa até ao bico. Gostava de passar as tardes na manicure, usava uma casaca de tecido escocês aos quadradinhos e asas personalizadas (e muito feias...).

Fechando o parêntesis, sabemos que o passeio das três da tarde do Pató o levou ao plácido reino de Dom Pila. Tratou de sacar tudo quanto era dinheiro (é um hábito conhecido dos dragões) e abalou para Caxias, de onde raptou a generalíssima das tropas de Dom Eduardo, Tronca; que, aliás, passava muito mais tempo com o seu soberano do que com as tropas, apesar de Dom Eduardo ser casado e ter que dedicar quase todo o seu tempo à primeira ninhada de oito princepezinhos todos com dois anos (ai!... que idade inocente, coitadinhos...).

O dragão Pató voou com o seu espólio para a montanha de Issékyerabom, em Sintra, e instalou-se numa cova que se abriu quando ele incinerou a estação de tratamento de resíduos biológicos; mas, fenómeno ainda hoje por explicar, os habitantes de Santo Amaro nunca deram pela diferença na sua ribeira.

Voltando a Santo Amaro, o roubo de todo o dinheiro da povoação deixou a economia no caos, tanto mais que, estando em estado de guerra, os dois estados vizinhos de Caxias e da Quinta dos Ingleses tinham mais que fazer do que cooperar na recuperação económica do reino de Dom Pila. Por isso, os habitantes tiveram que se arranjar como podiam para substituir o dinheiro roubado. Uma das soluções mais populares era o tráfico de informações. Snaga, o patife que já apresentámos, tinha um Banco onde se aceitavam depósitos e se concediam empréstimos de informações, a vinte por cento de juros mensais.

Apesar de tudo, os Amarenses até se podiam considerar com sorte, uma vez que os seus problemazitos económicos de pequenos passavam a insignificantes quando comparados com as atribulações dos seus vizinhos.

Das Guerras Públicas I

Cerca de um ano antes do começo da nossa história, poderíamos ter encontrado o Lugar de Ueiras em paz, respeitando um acordo assinado por Dona Juliana de São Julião, Dom Pila de Santo Amaro e Dom Eduardo de Caxias. Mas as intrigas espalhadas pelo imbecil do Chouriço, que meteu um vírus nos computadores do Lugar, levaram ao cancelamento do Tratado de Paço D’Arcos e ao eclodir das Guerras Públicas.

Dom Pila manteve-se neutral e Santo Amaro era o maior antro de patifes e renegados de todo o Lugar, desde as Marianas até Analgésico-lá-fundo, desde Sintra até às Ilhas e só não contamos com a Costa de Caparica porque o mapa rasgou-se ao meio.

Dona Filipa também se mantivera neutral, porque tinha um primo dono de uma taberna em Santo Amaro e, portanto, também não faltavam patifes no Huynesado das Ilhas.

Um dos patifes de Santo Amaro era fadista, anarquista e individualista. Dava pelo nome de Grishnâk Shogktovac Snaga (embora para os amigos fosse só Snaga) e era cliente habitual da taberna do Castanheira, o tal primo da Huynesa do Bugio.

Há muito, muito tempo...

... ou Notas Sobre a Geo-política do Lugar

Há muito, muito tempo, antes de ser proclamada a República e de o Presidente Isaltino ter unificado os povos, o Lugar de Ueiras era extenso e levemente acidentado, completamente coberto de florestas cerradas e negras, entrecortadas apenas por três rios que serpenteavam por entre as colinas: a ribeira do Espermatozóide, que nascia nas montanhas de Sintra muito para o Noroeste e desaguava junto ao castelo de Santo Amaro onde governava El-Rei D. João Pila; a ribeira do Queixinhas, que nascia fora do mapa e desaguava junto ao Castelo de Caxias onde sua majestade, D. Eduardo Locomotiva, era rei e senhor; o rio Jamorreu, na fronteira Leste, o qual nascia na Lua e desaguava perto das masmorras do pérfido Jouço Malumoroth, senhor das Trevas (isso é o que ele queria...).

Quer dizer, esta não era bem a fronteira Leste do Lugar de Ueiras, que só acabava em Analgésico-lá-do-fundo, mas nessa pequena porção de terra viviam os Piratas de Softe-Uere que nem eram humanos nem nada (eram chipes, uma raça meio p’ró metálica parecida com cães da pradaria que, apesar de não ser inteligente, dominava o terrível segredo do Sound Blaster com o qual fazia da vida dos marinheiros Oeirenses um inferno). À cabeça destes patifes estava o Pedro Chouriço, que mais parecia uma estrela do mar com caracóis (para não falar nos dentes amarelos e nas botas de sapador).

A Oeste o Lugar prolongava-se bastante para lá da ribeira do Espermatozóide (que era também conhecido por Rio-de-Água-Suja); chegava (ou, mais precisamente, chegava exactamente) até à ribeira das Marianas (que também não merece a nossa consideração porque secava todos os Invernos). Para lá do Ocidente ficavam os desertos inóspitos de Cascais, habitados apenas por povos nómadas como as Marianas (povo de mulheres guerreiras chefiadas pela rainha Mariana, uma loiraça autoritária que tinha tiques de general) e os Índios de Madorna, que eram tipos estúpidos e sem chefe e, além disso, já estão fora do mapa. Mais ou menos a meia distância entre a foz do Espermatozóide e a foz da Marianas ficava o principado da Quinta dos Ingleses, dominado pelo Castelo de S. Julião, onde governava a princesa Juliana.

Todos estes castelos se situavam ribeira direita do grande rio Tejo (alegre Tejo...), no meio do qual ficava, em frente a Santo Amaro, o castelo do Bugio, onde reinava sobre as Ilhas a Huynesa do Bugio, Dona Filipa (huynesa é um título mais ou menos entre duquesa e princesa).

19 novembro, 2006

Fragmento 1

Cabe-me agora, estimado leitor, o dever de concluir o relato começado pelos irmãos Marcus e Ludius e deixar para a posteridade um testemunho fiel (peço a Deus que me não deixe cair, por orgulho, nos os terríveis ardis da parcialidade) dos trágicos acontecimentos que antecederam o grande cataclismo que afastou para sempre das esferas do mundo aquele lugar e aquela gente que todos conhecíamos e prezávamos.

Temos notado que o primeiro sinal da desgraça veio com a aproximação do milénio. No ano 994, os irmãos Marcus e Ludius, que levavam a cabo a tarefa de escrever esta crónica, desapareceram subitamente. O seu desaparecimento teria sido premeditado? O que levou os dois monges, algum antes do seu desaparecimento, a confiaram o seu manuscrito à guarda do nosso mui amado abade, D. Bosco V?

D. Bosco escondeu o manuscrito e manteve segredo da sua posse até à data da sua morte, legando-o àquele que agora procura lançar alguma luz sobre a história destes negros tempos. A sua intenção era efectivamente que o texto se mantivesse desaparecido uma vez que os bens do abade, pela ocasião da sua morte, passariam para as mãos da igreja Salusiana. O santo abade, ao confiar-me o manuscrito no leito da sua morte, apelidou-o de “herético” e confiou-me que os irmãos Marcus e Ludius tinham caído no pecado do orgulho, abandonando a ortodoxia e secretamente propagando as ideias niilistas da seita do Grande Sábio Gottschalk, que previa catástrofes para o virar do milénio.

Perante os factos que precipitaram a chegada de tempos mais difíceis e vendo a sua vida ameaçada, pediu-me que estudasse cuidadosamente o texto, para distinguir a veracidade da heresia.